sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

MINI-CONTO

DE VOLTA PARA A MISSA DO GALO

Mais ou menos 21 horas. A casa em preparativos para a Ceia de Natal. Falatório animado, nervoso; corre-corre; as mulheres indo e vindo da cozinha para a sala e vice-versa; frituras e assados com cheiros bons; abre e fecha da porta do forno; a geladeira quase permanentemente aberta...
- Fecha a porta da geladeira!
- Olha o consumo de energia!
- Quero todo mundo fora da cozinha! Vocês atrapalham mais do que ajudam!
- Alguém ai passe um pano nos copos e nos talheres!
- Já separaram os guardanapos?
- Onde estão os guardanapos?
- Esqueceram de comprar os guardanapos? Ai, Jesus, e agora?!
- Olha no forno se o peru já está corado...
- Já subiu o pino, está no ponto!
- Tira rápido do forno, senão queima! ... Com um pano senão vai queimar as mãos!
Quase 23 horas e continua a azáfama, porém com a mesa quase completa; um detalhe aqui e outro ali; a garrafa de champanhe ainda na geladeira...
- Todo mundo se aprontando!
- O padre não espera; ele começa a Missa do Galo meia-noite em ponto!
Lá pelas tantas, imagino que dez ou vinte para a meia-noite, saio para a Missa do Galo. Ultrapasso a alta porta com soleira e tudo, desço os degraus que levam à escada externa de cimento, com mais de vinte degraus, atinjo o corredor do quintal, ultrapasso o portão de ferro e subo a rua, tomando a curva pelo lado esquerdo. Passo pelas casas do Seu Adriano e do Seu Muller e sigo rua acima. O caminho eu conheço bem já de mais de uma década percorrê-lo em direção ao Grupo Escolar ou para ir à casa de primos para brincar e, nos domingos, comparecer religiosamente às missas na Capelinha da Terra Santa.
A rua Washington Luís, naquele trecho, não tem mistérios para mim; cada metro eu conheço como a palma da minha mão. Vou subindo, passo pela entrada do beco, onde moram alguns companheiros e colegas e onde morou o Bolão, um rapaz muito gordo que um dia morreu quando descia de bicicleta a ladeira do Centro de Saúde; passo pelas casas da Fábrica São Pedro de Alcântara e atinjo o açude, entrando esquina acima para os altos da rua Rocha Cardoso. Bem na entrada, do lado esquerdo da rua, está a Maçonaria, um prédio em meio a grande terreno, que me mete muito medo. Dizem que é um lugar cheio de mistérios, daí eu seguir adiante olhando de esguelha para o grande triângulo chapado no largo portão de ferro; e bem rapidinho. Passo pela casa onde mora o prefeito Cordolino e sua família e por outra onde residem contra parentes de minha mãe e atinjo a residência do Seu Ribeiro, bem em frente a uma pracinha maltratada que sempre existiu por ali daquele jeito abandonado. Atravesso a rua e estou na capelinha da Terra Santa para onde confluem famílias inteiras, todas muito bem vestidas para a Missa do Galo; algumas paramentadas em roupas novas e gente humilde com seus melhores trajes.
Estou um pouco atrasado. Aliás, fui o primeiro a pedir mais rapidez a todos e ainda foram malcriados:
- Rapidez?! Isso é bom para você que não está fazendo nada!
Entro na igrejinha; está repleta. As crianças internas do Educandário já estão cantando as melodias de sempre e o Padre, solene, inicia o santo sacrifício.
Olho em volta, estão todos lá. As mesmas pessoas de todos os domingos: Mamãe, Papai, Gilda, Ruth, Marilda, Lea e Márcio formam uma fila que ocupa um comprido banco. Claro que eu me integro ao grupo, à minha família. Oramos, ajoelhamos, levantamos, sentamos, comungamos e a cerimônia vai se desenvolvendo. O padre faz o seu sermão, lê o Evangelho da comemoração, despeja orações e invocações em latim, que não entendo; meu pai maneia a cabeça demonstrando estar compreendendo tudo. Também, meu pai, um gênio, não saberia latim?! Ora, claro que sim!
A Missa do Galo chega ao fim, igualzinha à missa dos domingos. Até hoje nunca soube o porquê do nome: Missa do Galo. Lá em casa, por exemplo, temos um pequeno galinheiro e sempre observei que as galinhas dormem a noite toda e não acordam à meia-noite. Ah! e nem os galos cantam tão tarde.
Mas, deixa para lá, são mistérios que ainda desvendarei adiante na vida e até a tal da Maçonaria.
No burburinho da saída, as pessoas vão se cumprimentando:
- Feliz Natal, seu Joaquim!
- Feliz Natal, Dona Maninha!
- Feliz Natal para todos!
- Próspero Ano Novo!
Algumas senhoras mostram os filhos e netos, elogiam os filhos e netos dos outros, trocam gentilezas, sorrisos, apertos de mãos, cumprimentos. A igrejinha conserva as luzes por algum tempo, o suficiente para todos se despedirem e tomarem o rumo de suas casas. Fechada a porta da capela e o portão de ferro do jardim, tudo se esvazia sob a iluminação da rua. Os grupos de pessoas desaparecem nas esquinas da noite, perdendo forma nas curvas das ruas.
Intento descer de volta a Rocha Cardoso junto com minha família. Percebo que estou só. Recordo que havia subido até a igrejinha sem acompanhantes.
O negro da noite é cortado por cantigas de Natal e algumas luzes que vêm de janelas iluminam meu caminho. O clima é de alegria e festa, embora não sinta calor humano e tudo parece estar sufocado pelo ruço que ganha a rua e a tudo enevoa. Não vejo mais a igrejinha, a praça, a casa do seu Ribeiro...
Corro ladeira abaixo, desço uma Washington Luís sem vida e sem cor. Ruço. Ruço. Ruço.
Chego à casa. Está fechada, escura, sem vida, grafitada, abandonada, em ruínas...
Sozinho, recortado no espanto da noite nebulosa, só consigo chorar.

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